quinta-feira, 5 de abril de 2012

Magia e bruxaria na antiga Helada

Para compreender o que eram e como funcionavam a magia e a bruxaria na antiga Grécia, é necessário antes compreender o que tais termos significam.
O termo bruxaria (witchcraft) como se entende hoje é uma alusão à palavra anglo-saxônica para sábio wicce (lê-se witche) cuja raiz também deu origem à palavra inglesa de mesmo significado wise, e por conseguinte, witch (bruxo ou bruxa). Assim é igualmente em português, pois estudos etimológicos exploram a possibilidade da palavra bruxaria ter-se derivado da expressão latina plus scio (mais saber) que nos remete ao mesmo significado inglês. Por esta razão podemos considerar que a bruxaria no sentido mais primitivo da palavra e menos pejorativo seria a sabedoria popular e étnica cujo conhecimento nasceu de práticas similares às do xamanismo com o intuito de complementar recursos ainda não totalmente desenvolvidos em prol da comunidade.
Por sua vez, a magia é todo e qualquer ato de cunho religioso (rituais, preces, encantamentos, sortilégios, talismãs, etc) que, aliado à sabedoria popular, promove correlações entre ações ou elocuções em determinados eventos.
Em “A religião e a Filosofia no mundo Greco-Romano”, Otto A. Ohlweiler escreve:
“A precariedade das técnicas produtivas reais então disponíveis fez com que o homem primitivo fosse levado a complementá-la apelando para a prática da magia. As práticas mágicas marcaram profundamente toda a vida cotidiana do homem primitivo, servindo aos mais diferentes fins: para submeter as forças naturais à vontade dos homens; para proteger os indivíduos contra toda sorte de perigos; para favorecer o ataque aos inimigos; para garantir o sucesso na caça e na pesca; para obter boas colheitas na incipiente prática agrícola, etc. “

No entanto não apenas eventos de cunho mundano como os mencionados por Otto eram alvo das práticas mágicas na antiguidade. O Pensamento religioso primitivo caminhava por dois conceitos de realidade: A do mundo físico onde viviam os homens e a do mundo espiritual onde estava tudo aquilo que não podia ser visto a olho nu, mas que no entanto, tinha absoluta influência nas vidas dos homens.
Em How NativesThink (Les Fonctions, 1910), Lévy-Bruhl escreve:

“O homem primitivo,  portanto, vive e age em um ambiente de seres e
objetos, os quais, além das propriedades que nós reconhecemos
possuirem, são dotados de atributos místicos. Ele percebe que sua realidade objetiva se mescla com outra realidade.
Ele sente-se rodeado por uma infinidade de entidades imperceptíveis, quase sempre invisíveis aos olhos e temíveis: Frequentemente as almas dos mortos o rodeiam, e ele sempre está inserido em uma multidão de espíritos de personalidade mais ou menos definida.“

Esse tipo de pensamento, que complementa as questões de necessidades básicas do homem, obviamente o leva desde os tempos primitivos a querer beneficiar-se também dessas entidades quando positivas em seu ponto de vista e defender-se delas quando as considera maléficas. As práticas mágico-religiosas vão de encontro a estas questões e permeiam o pensamento/imaginário do homem desde os primórdios. A medida que o homem evolui, evolui também o pensamento mágico, que foi adequando-se e amoldando-se às novas necessidades, colaborando inclusive para a formação das sociedades em um contexto mais abrangente, dando margem ao surgimento de tabus, dogmas, e consequentemente leis, uma vez que toda ação produz uma reação, e que muitas vezes tais reações eram interpretadas de acordo com esses tabus.
Isso fez com que o pensamento mágico jamais saísse de cena, mesmo em sociedades já organizadas politicamente e bem estruturadas tecnologicamente como é caso da Grécia do período clássico. Mesmo entre grandes filósofos e pensadores como Platão, por exemplo, que não era favorável à prática da magia, a existência dela permaneceu evidente e, até certo ponto, temida. No entanto, exatamente por ser a magia um fenômeno psíquico e muitas vezes sem explicação lógica coesa, sua marginalidade seria um destino certo. Mesmo que muitos não creiam na eficácia da magia, o impacto psicológico que os atos mágicos causaram desde as sociedades mais antigas fez com que ela permanecesse viva até os dias de hoje, sendo motivo de terror para alguns e objeto de estudo para outros.
Na Grécia antiga, em um período que se estende desde antes da época helenística até a Idade média, artefatos arqueológicos evidenciam a prática da magia e deixam muito claro como e para quais fins ela era utilizada pelos helenos, sendo que um dos métodos mais significantes adotado por eles era o das tábuas de imprecações, as katadesmoi  (Κατάδεσμοι). Tais tábuas eram pequenas placas de metal (ou chumbo ou bronze) em que eram feiras inscrições para o favorecimento dos negócios, ações judiciais, vingança ou amor. Trechos ou versos de hinos também eram utilizados na composição de encantamentos de cura de enfermidades, alívio de dores, domação de animais, controle de eventos naturais como chuvas, vendavais, cheias de rios e até mesmo para afugentar ou atrair espíritos, tanto os da natureza quanto os de pessoas mortas. A feitura de talismãs em pedras entalhadas, ossos, argila e metais nobres também era comum.
Este disco de terracota encontrado em uma escavação na década de 60 em Gela, no sul da Sicília (onde verificou-se o maior fenomeno da colonização grega), e que data aproximadamente do período entre 300 e 280 AEC (fim da ocupação da Magna Graecia) traz um bom exemplo de um talismã grego de proteção, cuja técnica fora projetada para além do Império Romano.  Nele, em uma das faces está em relevo a imagem de uma Górgona e na outra traz um verso que diz:
ρακλς ν-
θ<δε> κατοικε·
μ ’στω μη-
θν κακν.
“Herakles vive aqui. Não deixe nenhum mal entrar.”
Próximo deste mesmo período, datando do início do Império Romano, foram encontrados braceletes confeccionados em metais nobres que traziam inscrições de símbolos mágicos e encantamentos em grego para curar enfermidades, como é o caso desta peça à esquerda que ilustra um bracelete romano em ouro que traz a seguinte inscrição:
θεὸς κελεύω μὴ[κ]ύειν πόνο[ν] κόλον
 (“Deus, eu ordeno que o ventre não mais conceba a dor”). Muito provavelmente uma espécie de amuleto para conter cólicas menstruais, uma vez que o encantamento termina com a palavra κόλον, provavelmente referindo-se não ao ventre propriamente dito, mas ao útero como foco do encantamento.
Outro artefato mais antigo de sabida utilização pelos gregos especialmente para defesa contra forças do mal, e que datam pelo menos do século IV AEC, são as kolossoi, pequenas efigies normalmente confeccionadas em bronze ou chumbo, mas que há evidências de kolossoi feitas em argila, metais preciosos, madeira, cera e até mesmo feitas com terra de sepulturas. Essas boneca eram representadas quase sempre de joelhos e com as mãos e os pés atados, e uma quantidade de espetos tb de metal as perfuravam em partes específicas do corpo de acordo a intenção do praticante. Normalmente nos olhos, boca, genitália e membros tanto superiores quanto inferiores. Elas eram mais freqüentemente encontrados em túmulos, santuários, corpos de água, leitos de rios, esgotos, e também em uma casa helenística em Delos.
O objetivo das Kolossoi era principalmente o de “amarrar” as forças do mal ou quaisquer entidades que pudessem ser contrárias aos intentos do feiticeiro que a manipulava, incluindo deidades de tribos inimigas, mas também poderiam ser usadas contra inimigos humanos, fantasmas e até para prender o amor de alguém. No caso de defender-se de um inimigo cuja identidade é desconhecida, usa-se um par de kolossoi, um macho e outro fêmea. E no caso de saber-se ser um grupo de inimigos (normalmente uma outra tribo) ou grupo de espíritos usava-se em número de três.
Não era incomum a utilização de kolossoi de cunho sexual para amarrações de amantes, pretendentes e até mesmo maridos/esposas suspeitos de cometer adultério.
Sendo assim, estas e outras tantas formas de magia imitativa e manipulativa foram ganhando cada vez mais terreno a medida que a sociedade grega se desenvolvia, deixando seu caráter gentílico para assumir uma postura política, trazendo por consequência uma necessidade muito mais agressiva e imediatista de resolução de adversidades, fosse uma briga política, uma guerra entre estados ou até mesmo a derrubada de um competidor em evidência nos jogos. Essas novas necessidades fizeram com que muitos religiosos que praticavam as artes mágicas passassem a ver nisso uma forma de extorquir dinheiro da comunidade e começarem a cobrar por seus serviços, desta forma impelindo charlatões às mesmas práticas e obrigando o governo, no caso de Atenas, a tomar medidas precatórias com relação à prática da magia. Foram então criadas leis que puniriam com a mesma severidade com que um assassino era punido qualquer um que se conseguisse provar ter-se utilizado da magia para atentar contra outrem. Eis o início da marginalização da magia na Antiga Grécia.
Vimos, portanto, que há infinitos exemplos de como os atos e artefatos mágicos eram aplicados na vida cotidiana dos gregos, diferindo apenas um “religioso” de um “bruxo” o direcionamento de suas intenções diante da sociedade em um contexto muito mais político do que moral, uma vez que suas preces eram recorridas aos mesmos Deuses, seu modus operandi era praticamente o mesmo assim como os resultados obtidos.
No mais, o legado que a magia grega nos deixou é imenso, e ainda é até os dias de hoje um prato bem servido de história, filosofia, matemática e arte.

Duggan Chthonio
Grupo Naós Ekátis – Pelo estudo e resgate da bruxaria helênica no Brasil
- Texto sedido para a revista digital Pan Magazine - [neo]paganismo e reconstrucionismo na Paraíba ano 1 – número 0 – volume 2 - Primavera/ 2011 - Realização do  ENCPBNP – Encontro Paraibano de Neopaganismo - Editor-Chefe: Thiago Oliveira